Olho a página branca marcada com tipos pretos. Seria mais dramático se tivesse sido escrita na velha máquina de escrever. Barulhenta. Onde é difícil apagar a verdade. Hoje, ela fica cuidadosamente posicionada no canto da sala. Objeto de decoração. Peça de antiguidade. O ponto final no ato romântico de escrever.
O ponto final no romantismo. Quem tem tempo para se dedicar às convulsões do coração em dias de hiper-informação, mensagens instantâneas e telas sensíveis ao toque.
Sensíveis ao toque. Às vezes parece que apenas elas, as telas, tem hoje o prazer de receber o toque, a carícia dos dedos. Delicados. Ásperos. Determinados. Errantes. Trêmulos. Apaixonados. Envergonhados. A pele, ressentida, espera desesperançosa pelo contato que nunca vem.
Compartilhamos pensamentos libidinosos, compartilhamos imagens de alcova, compartilhamos intimidades, poses, olhares, trajes e sensações. Incapazes de compartilhar carinho e atenção, compartilhamos a banalidade com todos, sem compartilhar a alma com ninguém.
Volto à página branca marcada com tipos pretos. Leio de novo. Ainda é possível se emocionar com a palavra. Quisera eu conseguir emocionar mais alguém. Choro baixinho. Isso não compartilho. Que hoje em dia a gente só compartilha felicidade. Pra tristeza, a solução qualquer farmácia tem.
Queria bater no teclado até os tipos pularem da página branca. Caírem na mesa, escorrerem pelas beiradas formando uma linda poça no chão. Não é possível. Eles apenas se embaralham na minha frente. Perdem o sentido. Enfeiam.
Limpo a bagunça. Levo a mão aos olhos. Suspiro. Um dia a gente aprende.
Olho pra fora. Fixo na luz. O sol arde. O calor é intenso. Os olhos doem. Volto à página branca. Tudo o que vejo é só um clarão. Foi. Finalmente foi embora. Alívio. Manchas negras pipocam ao redor. Desaparecem. Voltam os tipos pretos. Volta a página branca. Volta a escuridão.