Chá ou Café?

Chá. Chá preto, chá verde, chá mate, chá de lírio, chá de cogumelo.... para reunir os amigos, para conversar, para viajar... Histórias mais filosóficas, mais sensoriais, mais espirituais, mais... ........................................... Café. Café curto, café longo, café com um pouquinho de leite. Pra acordar, pra deixar ligado, pra tomar rapidinho no balcão. Histórias do dia a dia, teorias de 2 segundos, pirações mais terrenas...

quinta-feira, julho 27, 2006

Manifesto do caos autoritário – uma história de café, amargo

Apesar de ter nascido e crescido na tal nova democracia brasileira, os saudosos anos 80, eu sinceramente não acredito muito na utilidade da tal democracia. Quando eu nasci, o país ainda estava sob o comando dos militares, depois vieram as diretas já e finalmente, nosso primeiro presidente “legitimamente eleito pelo povo”. Desse tempo todo, pouca coisa eu me lembro. Estava mais interessada em brincar de mês e mãe da rua, jogar intellivision e tomar leite com Brown Cow do que qualquer outra coisa. Mas, de qualquer forma, mesmo que inconscientemente, eu deveria ter me deixado levar por toda aquela empolgação da volta à democracia...

Pois bem, deveria. O fato é que isso não ocorreu. Ou melhor, até deve ter ocorrido, o problema é que, com o tempo, eu acabei por desenvolver a minha própria visão, deveras peculiar devo ressaltar, sobre a democracia.

Sinto aqui ter que desapontar mas, não, infelizmente a maioria NÃO tem sempre a razão, e a voz do povo definitivamente NÃO é a voz de Deus e eu sigo acreditando nisso até que alguém me prove muito bem provado o contrário.

Quando todas as pessoas concordam em alguma coisa, isso só significa que a maioria não tem opinião própria ou, quando tem, não possui personalidade forte o bastante para sustentar seus pontos de vista, acabando por ser influenciada, manipulada e se deixando levar por argumentos de pessoas que, astutamente, perceberam no ar tais fraquezas. Aquela velha história da maria-vai-com-as-outras.

E junto com a democracia vem sempre a sua amiguinha, a tal da organização. Ou seja, lá se vão todas as ovelhinhas atrás do seu pastor, enfileiradinhas, obedientes, balindo em ritmo e sem reclamar. Obviamente, o ser humano que decidiu que as pessoas deveriam se organizar em fila e esperarem a vez de serem atendidas era um puta cara safado e manipulador, que só estava querendo tirar proveito da grande massa que nunca sabe o que quer e acaba aderindo à maioria.

Já reparou que, nas filas do pedágio, tem sempre uma enorme e umas outras menores e as pessoas continuam entrando na fila maior sem explicação aparente? Ou então, dois restaurantes, um do lado do outro. Um deles com filas intermináveis, o outro, calmo, vazio e agradável e as pessoas seguem entrando no abarrotado. Por quê? Murphy? Ah, não venha importunar o pobre rapaz mais uma vez. A resposta é simples e sempre esteve aí. Simplesmente porque certas pessoas não acreditam nelas mesmas. Não acreditam que possam estar certas, quando o resto das outras pessoas está fazendo exatamente o contrário do que elas gostariam de fazer. Não suportam o fato de estarem sozinhas, sustentando suas posições, quando o grupo ao lado tem tantos outros membros para apoiar e defender. Mas eu repito, a grande maioria que está onde a grande maioria está, nem sequer sabe o que está fazendo ali.

Você passa horas na fila da bilheteria e a fila nunca anda. Você e o seu senso do organização, senso previamente imposto por alguém de mente muito mais autoritária que a sua. E você fica lá na fila, sem reclamar. E o amigo do amigo do amigo entra na sua frente e na frente da pessoa à sua frente. E o bilheteiro guarda um ingresso pro vizinho, pra cunhada, pra amiga da tia da sogra da namorada do irmão. E quando chega a sua vez, obviamente o espetáculo está lotado e não lhe resta opção alguma senão lamentar e aceitar que a vida é assim mesmo, não se pode ganhar todas. Oras, tudo culpa da maldita organização. Ou melhor, aqueles que foram fortes o suficiente para imporem o que queriam, seja furando lugar na fila ou fazendo uso de suas influencias pessoais, garantiram seus interesses. Enquanto o resto, a maioria, ficou fazendo o que sempre faz, parada, esperando ordens e seguindo os passos do líder, sem muito bem saber o porquê.

Você já reparou que primeiro você entra na fila e depois vai descobrir para onde ela vai? Puro e simples condicionamento. Você já está treinado a se juntar à maioria, não importa o que ela queira.

É por isso que eu venho aqui defender o caos autoritário, onde cada um vai onde quer e exige o que quer, por direito, uso capião, ou qualquer que seja o melhor argumento. O importante é que vença aquele que realmente acredite no que está fazendo, e que faça por que quer e que seja feliz fazendo.

Quando em São Paulo... - uma história de café

Nasci em São Paulo, cresci em São Paulo, sempre morei em São Paulo. E quando eu digo São Paulo, eu quero dizer Sãopaulocapital, a megalópole maluca, o pólo econômico brasileiro e etc e etc. Como toda boa paulistana, fui criada sabendo que a cidade não pára, não dorme, não descansa, que o tempo é um bem intangível, precioso e inalcançável e, principalmente, fui ensinada que correr é preciso.

Mas me comportando como uma típica nativa do que um dia foi a terra da garoa, eu nunca me preocupei muito com isso, simplesmente absorvi, assimilei e adotei como modo de vida. Realmente, sinceramente, nunca achei que tivesse algo de errado no modo com que eu e meus conterrâneos vivemos. Em viagens para o interior sempre ouvia coisas do tipo “nossa, mas São Paulo deve ser uma loucura, eu nunca conseguiria viver num lugar desses”, no que eu nunca dei muita importância, ou melhor, nem entendia como alguém podia achar a vida em São Paulo algo impossível de se imaginar, ou ainda, viver.

Bem, como o destino sempre arranja um jeito de nos convencer do contrário, quer estejamos dispostos ou não, um dia desses, estava eu andando na Avenida Paulista, ou melhor, correndo desesperada, como se fossem meus últimos minutos na Terra, quando me perguntei “mas porque eu estou correndo assim?”. Ora, porque eu estou na Avenida Paulista e todo paulistano que se preze está sempre correndo na Avenida Paulista, só os turistas passeiam, o paulistanodeverdade corre, apressado, não olha para os prédios, não percebe a existência do MASP e só não é atropelado nos faróis, porque está acondicionado a andar somente quando a manada anda, ou seja, quando o sinaleiro permite. Mas o problema é que eu estava correndo na Paulista as exatas 9 horas da noite e eu não estava indo para um jantar de negócios, ou para uma visita com hora marcada, eu estava indo do cinema até um barzinho encontrar um grupo de amigos. Eu estava tendo um momento de lazer!!!! Lazer!!! O que era para ser um instante prazeroso, uma caminhada agradável do cinema na rua Augusta, até o bar na altura do MASP, observando as pessoas, os arranha-céus, as luzes da cidade, não passava de mais uma maratona habitual na minha insignificante existência. Foi aí que eu percebi que alguma coisa só podia estar errada. Porque correr durante o dia, atrás de todos os compromissos que você tem que atender e contra o trânsito, é algo normal, ou melhor, aceitável na nossa distorcida concepção do mundo moderno. Agora, correr durante as horas em que você deveria descansar, beira o cúmulo do absurdo, se já não é o próprio.

Porém, ao que tudo parece, trata-se apenas de mais um dos hábitos do homo sapiens oriundo da capital paulista. Ele acorda meio que no susto, toma banho correndo, se arruma correndo, agarra algo para comer no meio do caminho, (sem parar de correr, é claro), e se atira dentro do carro para ficar parado no trânsito até conseguir chegar ao trabalho. Chegando lá, faz tudo o que tem que fazer correndo, sai para almoçar correndo, (afinal, pode ser que sobre tempo para passar no banco, no correio, ou dar uma corridinha na academia). Aí ele volta para o trabalho, corre até o fim do dia, fazendo de tudo para sair o mais cedo possível e usufruir de algum tempo para ele mesmo. Então, ele se joga novamente no carro e vai cumprir seus compromissos de pai, companheiro, amigo ou voluntário. Entretanto, ele ainda tem que travar uma das mais importantes batalhas do dia, o assustador, irredutível, invencível, congestionamento metropolitano. Cada momento parado, cada segundo perdido é motivo de uma culpa profunda por estar desperdiçando o bem mais precioso: tempo, de modo absolutamente improdutivo. É por isso que o paulistano come no carro, fala ao telefone no carro, agenda reuniões no carro, faz teleconferências do carro, lê jornal no carro, conversa com os filhos no carro, pede em casamento no carro, pede divórcio no carro. Porque, simplesmente, esse será o único, e enfatizo aqui, O ÚNICO momento no dia em que ele estará parado “fazendo nada”. E é imperativo que esse tempo seja ocupado com algo minimamente importante no seu dia, para “adiantar”, para, quem sabe, no fim do dia, ter tempo livre para se divertir. E quando, por alguma artimanha do destino, ele consegue, quase que por malabarismo, dispor de algum “tempo livre”, acha logo um jeito de ocupá-lo com algo que nunca tem tempo para fazer, como ir ao médico, ao dentista, ao cabeleireiro, visitar uma amiga que deu à luz, rever algum parente que mora do outro lado da cidade, (mesmo que isto signifique passar mais tempo no trânsito do que com os entes amados), ou então encontrar alguns amigos que estão esperando uma visita há cerca de 3 anos, ou jantar fora, ir ao cinema, a um bar, necessariamente nessa ordem para ocupar cada segundo disponível do precioso tempo livre.

E quando o paulistano sai de férias? Como num plano de guerra, antes de sair de casa, ele tem a viagem inteira planejada, cada segundo aproveitado, do aeroporto ao hotel, do hotel ao sightseeing, do sightseeing ao museu, do museu ao parque, do parque ao restaurante, do restaurante ao bar, do bar ao hotel e tudo de novo. Ele divide o mapa da cidade a ser visitada em setores, traça os caminhos mais curtos, calcula o tempo a ser gasto em cada atração com a precisão de um cirurgião ou piloto de caça. Quando retorna do descanso, obviamente esgotado, tem a sensação de que necessita de outras férias, só para se recuperar da correria. Mas não adianta, nem com todas as férias do mundo o paulistano seria capaz de se entregar pura e simplesmente à preguiça de uma rede, ou à vista do alto de uma montanha, sem celular, internet, rádio ou televisão, apenas observando o cair da tarde e o conseqüente e inevitável pôr do sol, sem se preocupar com a cotação do dólar no fim do dia, ou a agenda para amanhã.

No fim das contas, acho que eu nunca saberia viver de outro jeito. Já me acostumei a correr de lugar a lugar, organizar meus finais de semana como se fosse uma perseguição ao elo perdido, preenchendo cada lacuna do meu tempo com algo “útil”. Um filme que eu ainda não vi, uma exposição que ainda não visitei, um restaurante que ainda não provei, uma peça que ainda não assisti. E o mais curioso é que, por mais que eu me organize, essas atividades nunca cessam de aparecer e nunca me resta tempo livre para simplesmente fazer nada, sem me sentir culpada, sem me sentir a última das paulistanas, porque não estou utilizando meu tempo de forma proveitosa e louvável.

Amarras – uma história de chá, com muito açúcar

De cores suaves e leve material, a echarpe se contorcia sinuosamente ao sabor dos olhares que senhoras, moças e mulheres lançavam sobre ela. Adornando um manequim, o majestoso pedaço de pano pairava acima da reluzente quantia de trezentos reais.

Mulheres bem vestidas, mal vestidas, altas, baixas, gordas, magras, pálidas, coradas, sorrindo, reclamando, paravam em frente à vitrine e eram enfeitiçadas pelo brilho e charme do sublime tecido.

Sejamos sinceros, tais atitudes femininas não eram por completo exageradas, afinal, não se tratava de um mero lencinho e sim, de uma echarpe imponente, elegante e, porque não dizer, certas vezes até arrogante. Porém, certamente, era de uma postura advinda da realeza.

Certo dia, finalmente, ela ganhou o mundo, saiu da loja, soberba como sempre, envolvendo, enlaçando, encobrindo nuca e pescoço de uma importante senhora. O domínio de uma sobre a outra era tão grande, que elas não se largavam, não se separavam e a echarpe envolvia e enrolava cada vez mais sua senhora.

Numa manhã de inverno, cansada de envolver somente a fala, o leve recorte de fazenda deixou-se levar pelo vento frio, caindo aos pés de uma jovem moça. Não é uma senhora, porém tem lá seu charme. A sorteada abaixou-se lentamente, segurou e afagou o objeto tão cobiçado. Delicadamente, envolveu sua cabeça com o precioso tecido, seguindo seu caminho.

Geniosa, após alguns meses, a echarpe se cansou de dominar somente o pensamento, deixando-se cair vagarosa e graciosamente do alto do apartamento em que reinava. Estatelada no chão, foi pega por uma rapariga que a amarrou ao redor da cintura.

Os dias se passaram e a mulher se deu conta de que o precioso pano havia sumido. Sentiu, então, um frio no colo, um vazio, uma certa solidão, desprotegida.

A vida se acalmou, todas esqueceram que, certa vez, o forte tecido encobriu-lhes os corpos. E um dia, a estrela reapareceu. E lá estva ela, a echarpe, numa casa abandonada, prendendo firmemente, porém com elegância, os pulsos de um criminoso, enquanto os policiais apontavam-lhe as armas.

Sombra – uma história de chá, talvez de jasmim

Cansado e aborrecido, ele saiu para mais um dia de trabalho. A mesma hora, a mesma rua cheia de gente, a mesma multidão anônima em busca de algo que se perdeu. A sua frente, andava um homem apressado. Olhava a todo momento para o relógio. Era tão incrivelmente diferente, porém igual.

Sem perceber, ele e o outro estavam andando nos mesmos passos largos. As mangas da camisa do outro não estavam dobradas. Ele desdobrou as suas. O relógio do sujeito estava no pulso esquerdo. Ele colocou o seu na mesma posição. O cabelo do outro, impecável. Risca bem feita, sem embaraços. Ele lutou para que o seu ficasse igual. E quando terminou, andavam lado a lado.

Ambos entraram num prédio alto e pomposo. Uma reunião. Ele aprovava qualquer decisão que o outro tomasse, aliás, nem as contestava. Foram para uma festa. Os flashes das máquinas fotográficas lhe proporcionavam uma sensação incrivelmente boa. Almoço com pessoas importantes. Aquilo era como nascer de novo.

Tudo era tão novo e diferente... Logo os dois tinham os mesmos pensamentos. Ele não precisava mais escolher, somente seguia o outro. Era agradável não ter que se preocupar, decidir. Tinha a impressão de flutuar, porém uma força sempre o puxava para baixo. Quando percebeu, seus pés estavam grudados aos do outro. Mas ele não se importava com mais nada. Vivia agora num mundo em que só havia luz.

Lembrou-se que tinha uma família o aguardando em casa, quis voltar, mas o brilho do novo mundo o impedia de pensar. Foi para a casa daquele homem. Conheceu sua família, seus problemas e então, quis correr, sair, gritar. E foi aí que ele se deu conta, não passava de uma projeção. Era somente o contorno daquele homem, a luz daquele incrível mundo o atraia e era essa mesma luz que o prendia. Ele era agora a ausência de luz, era uma imagem negra presa a impassibilidade e conformismo do não saber. Era agora, apenas sombra.

Ele queria pensar, porém não sabia mais quem era. Ele queria correr, porém não comandava mais suas pernas. Ele queria se encontrar, porém não sabia como havia se escondido. Ele queria voltar, porém não sabia como havia se perdido.

O outro foi para o quarto. E ele também. O outro deitou na cama. E ele também. O outro desligou a luz. E ele sumiu.

Uma corrida desesperada – uma história de chá, sem açúcar

E ele saiu de casa determinado a nunca mais voltar. Cortou distância, falou com estranhos, viu o mundo sempre querendo ir mais além. Foi nessa corrida desmiolada que ele viu alguém. Viu e lembrou-se de que também havia deixado alguém, que alguém em algum lugar ansiava por sua chegada e esta tardaria enquanto se fizesse necessário.

E assim ele se deixava levar, com o passar do tempo, com o correr dos ventos, ia se deixando cada vez mais longe, cada vez mais distante de um destino impossível de alcançar.

Dias foram passando, fases se extinguindo, luas mudando. As estrelas já não olhavam para ele da mesma maneira, não sorriam da mesma forma, não lembravam com o mesmo carinho, não abraçavam com a mesma emoção. E ele apenas lá, deixando-se esperar, fazendo-se estar, ocupando um lugar que não lhe merecia, atendendo a um sonho que não conhecia, respirando um ar que não lhe penetrava. Os dias passavam e cada dia novo era igual e cada sonho novo era mais real, real como algo que não se altera, que é e pra sempre ser o mesmo.

Queria chegar ao fim, sim, como queria, e queria mesmo, com todas as forças que vitoriosamente ainda lhe restavam.... Dias frios, quentes, chuva, nada mais importava. Nada mais podia lhe fazer sentir novamente as emoções daquele que, sorrindo, conquista o mundo e, caminhando, alcança histórias. Apenas a limitada existência, a dúvida de ser, a incerteza de esquecer, a impureza de pertencer. A cada dia, era menos ele, até que, num desses dias, como as águas carregam as folhas que não querem mais respirar, ele se foi, levado por mãos que não podia sentir, por olhos que não podia enxergar, pela velocidade que não conseguia encontrar mas, principalmente, pela força, pela insistência de um dia vir a ser.

Sinais – uma história de chá

Começou a andar sem saber para onde ir. Tropeçou em vírgulas, parou em pontos, comeu algumas letras e continuou a viagem. Não sabia ao certo o que estava fazendo, nem quem precisava encontrar, sabia apenas que precisava chegar.

No seu caminho errante, a certa altura, se deparou com um asterisco. Era um asterisco jogado num canto da estrada, meio abandonado, meio confuso, ao certo incerto. Se aproximou do asterisco, já que estes interessantes exemplares sempre assinalam algo importante. Puxou conversa, ele não respondeu. Ofereceu água, ele não quis. Nervoso, sacudiu o pobre sinal, sem receber a menor reação. Pobre asterisco largado no chão. Não respondia a mais nada.

Certo de que aquele era um aviso, rumou para o sentido indicado. A cada passo o caminho ficava mais estreito e a cada curva, mais árido. Quando parecia que a solidão era eterna, encontrou um colchete pendurado em uma árvore. Ei amigo colchete, o que faz aí? Ele nada respondeu. Ei amigo colchete, jogue-me um fruto repleto de seiva, esse calor está me matando. Num rápido golpe, uma aspas caiu na cabeça do andarilho. Gritou algumas reclamações para o colchete, pegou as aspas e saiu andando.

Daquele ponto em diante, o caminho ficou bem diferente. Uma grande planície verde se estendia até o alcance dos olhos e a cada passo, uma mata mais fechada aparecia. Tentou beber as aspas, mas eram muito estreitas para conterem líquido. Então mordeu-as e seu sabor era falso como algo que não deveria estar ali.

Seguiu viagem, andou apressado, andou devagar, até que parou em frente ao enorme obstáculo. Um grande, pesado e imponente mais.

Não conseguia passar, não conseguia pular, não conseguia correr.

Sem saber porquê, retirou toda a roupa, nu em origem. Aos seus olhos, a terra engoliu o grande mais e ele pôde passar.

Vulnerável, sentia toda a força do vento ao seu encalço. Sentia as duras mãos das folhas batendo em seu peito, os finos chicotes da grama cortando suas pernas e o forte braço dos céus pressionando sua cabeça.

Caminhou até onde sua força agüentou. Persistiu até onde pôde. Entretanto, uma vontade era mais forte e, em dado momento, não conseguiu mais prosseguir. Sentiu a perna amolecer, o pé desobedecer e uma estranha pressão o jogou ao chão.

No seu delírio, não sentia mais o inútil corpo, não via mais o verde, não soprava o intenso vento, não reconhecia mais a dor.

Levemente, instante a instante, seu corpo revelou-se em mudar. Era apenas uma massa, transmudando sua forma, alinhando seus instintos, assumindo outro lugar.

De repente, sem entender como, ele se viu em paz novamente. A angústia o abandonara, a tristeza não mais o perseguia, sua forma não mais importava e era irrelevante o que via. Sem saber como, sem ter como explicar, ele era apenas uma única existência, um único refletir. Ele era agora sublime e onipotente, um igual.

O que eu faria se ganhasse 500 mil reais? – uma historia de café, talvez Irish Coffee

O que eu faria se ganhasse 500 mil reais?

Primeiro: eu seria uma semi milionária. É claro, se 500 mil reais são meio milhão, eu seria praticamente metade de uma milionária, ou seja, uma semi milionária. Partindo desse princípio, eu poderia fazer qualquer coisa que semi milionários fazem, ou seja, metade do que os milionários de verdade podem ou conseguem fazer. Isso não seria realmente um problema, já que eu nunca cheguei perto da casa das centenas seguidas de três zeros, portanto ultrapassar a marca dos mil e alcançar a marca do milhão poderia ser um choque muito grande para uma humilde pessoa como eu. Deste modo, meio milhão, ou quinhentos mil reais já seria o suficiente para me acostumar com um singelo, porém novo estilo de vida.

Mas voltando ao que importa nesse devaneio, o que eu faria se ganhasse 500 mil reais? A primeira coisa seria obviamente pedir demissão. Não que eu seja uma preguiçosa em potencial, mas não adianta ninguém me afirmar que trabalha por puro prazer, que eu não acredito de jeito nenhum. Portanto, pediria demissão. Deixaria meu chefe na situação mais perdida do mundo, pois pararia imediatamente de trabalhar e, só como vingança, iria exigir todos os benefícios a que tenho direito e que eles nunca me pagaram e que deveriam me pagar na hora da demissão. Já que eu seria como já falei, semi milionária, caso eles não quisessem me pagar, eu contrataria o melhor advogado e iria extorqui-los até o último centavo. Não que eu precisasse do dinheiro com 500 mil reais no bolso, mas eu sou uma pessoa justa por natureza e sendo assim, iria lutar por meus direitos até o fim. Não é porque me tornei uma semi milionária da noite pro dia que renegaria a todos os meus ideais.

Depois, mais calma e sentindo a suave brisa da liberdade soprando em meus cabelos, eu iria desfrutar de todas as facilidades que somente um semi milionário pode ter.

Passaria a freqüentar a seleta roda dos semi milionários. Pessoas famosas e de grande reconhecimento social. Aqueles que não tiveram coragem de arriscar a pergunta de um milhão, seqüestradores, políticos em início de carreira, ganhadores da tele sena e porque não, alguns ganhadores da sena e mega sena. Fora aqueles que herdaram a firma do pai e por má administração, empobreceram até chegar a semi milionários, aqueles que um dia já foram milionários e que portanto agora são semi milionários, porém com a classe e todo o bom gosto dos mais finos e exclusivos exemplares de milionários legítimos.

Mas já que eu seria apenas uma semi milionária, recém saída da conformada, medrosa e acomodada classe média, eu tomaria muito cuidado com os meus quinhentos mil reais e tentaria aprender com os ex-milionários, como atingir a sofisticação e leveza de pessoas que, um dia, já foram milionárias. Isso porque como estaria começando no assunto, teria grandes chances de subir de cargo aprendendo o caminho certo.

Voltando, o que eu realmente, efetivamente, faria com quinhentos mil reais só meus, todos meus, para gastar da maneira que eu quisesse? Não sei. Como assim eu não sei? Não sabendo, oras. Você acha que sabe? É claro que acha, eu também achava que sabia até o momento de pensar seriamente sobre esse assunto. Veja só. Pensei em comprar um apartamento para morar. Grande, só para mim. Mas aí achei que seria muito mais sofisticado comprar um Loft, afinal, todo mundo que é moderno hoje em dia mora num Loft. Aí eu lembrei que seria complicado convidar pessoas para passarem mais tempo na minha casa, não existe muita privacidade, então voltei ao apartamento. Mas eu também poderia ter uma casa, afinal, eu sempre quis ter um quintal enorme cheio de flores só para mim. Mas e a segurança? Será que seria seguro uma menina sozinha numa casa enorme? E os empregados? Quantos empregados contratar? Onde achar bons empregados, como saber se eles não iam me roubar ou seqüestrar? E o carro? Não poderia comprar um carro importado porque eu correria o risco de ser assaltada. Bem, existem os carros blindados, mas mesmo assim, não gosto da idéia de correr o menor risco. Tá, tudo bem. Mesmo sem os quinhentos mil reais eu corro o risco de ser assaltada a qualquer momento.

Viu como é difícil ter quinhentos mil reais? Além disso, eu ainda teria uma imagem para cuidar, a imagem de uma semi milionária. Que salões freqüentar, que roupas comprar, que festas ir. São muitos detalhes.

Por fim, acho que eu decidiria colocar tudo na poupança. Desde que o Collor não esteja na presidência e a Zélia não esteja no ministério, a poupança é sempre um bom investimento e, com sorte, meus quinhentos mil poderiam rapidamente se transformar em quinhentos e cinqüenta mil e com mais sorte ainda e muita paciência, rapidamente eu poderia me tornar a mais nova milionária do país, ex semi milionária e aí, com um milhão de reais, eu teria muito mais facilidades para decidir o que fazer.

Enfim, o eterno medo da classe média. Quer ser rica mas nunca tem coragem de ousar, não arrisca, não se expõe, pensa pensa, sonha sonha, mas nunca chega a nenhuma grande conclusão, apenas se dedica e espera, com toda a paciência, que um dia chegue a sua grande oportunidade, que tire a sorte grande para só então, mudar tudo.

O Outro Lado da Rua – uma história de chá

Fazia sol do outro lado da rua e ele continuava ali, preso, no frio, respirando o ar congelante, no meio fio da vida, andando numa linha reta, paralela à escuridão.

O barulho das máquinas o ensurdecia. A luz verde o deixava cego. Os sons dissonantes, marteladas ininterruptas, uma gota de água pingava incessantemente em sua cabeça. Ele ia ficando louco. E perdido. E louco e cego e mudo às palavras bonitas da vida, e paraplégico para os campos de flores, e aleijado para os abraços carinhosos, e solitário.

Estava trancado em uma caixa fria, na contramão das emoções. A ele restava apenas a infeliz tarefa de observar o mundo, apenas olhar, nunca tocar, através das pequenas gretinhas da armação de papelão.

Trancado em uma cela, encarcerado em seus medos, asfixiado por suas esperanças, ele via o dia passar. E o dia passava e chegava outro igualmente cinza e outro um pouco mais negro e nada mais fazia diferença.

O frio púrpura mantinha seus dedos sempre no mesmo ato incessante. Batia na mesma tecla sem parar e o barulho que fazia, só o deixava mais infeliz.

Olhava para o outro lado, perto, porém inalcançável. Um céu azul, um carpete verde, o barulho da água correndo, alguém que canta. Mas isso era apenas ilusão. Estava preso, entocado, guardado, encurralado em um corredor cinza, apenas a espera da morte, de algo que o levasse, que trouxesse a felicidade e colocasse um ponto final em seu parágrafo.

De todas as tristezas, ele tinha certeza apenas de uma coisa. O Inferno era frio, e não prendia ninguém. Estava ali porque queria, preso por algemas de medo, amarrado com cordas de insegurança e sua falta de confiança pesava como bolas de aço.

Andava torto e manco pelos cantos escuros, esperando encontrar um lugar para se esconder. Pensava forte e pedia e, um dia, caiu tão fundo que não podia mais subir. Mas isso não o incomodava. Porque agora, o ar que respirava era claro, era leve, era fino e seu corpo agora era quente e seus cabelos eram soltos e estava coberto por um cobertor verde e macio e uma luz forte o encorajava e aquecia, enquanto uma voz doce o embalava num sono de paz, alegria e enfim, eterno.

G de Geraldo – uma história de café. Com adoçante

- Querida, eu preciso te contar uma coisa.
- Sim meu bem...
- Não me chame de meu bem.
- Desculpa, amor...
- Nem de seu amor.
- Ai, Geraldo! Mas que mau humor, heim? Fala logo o que você tem pra dizer...
- Querida... eu sou gay.
- GAY? Mas como assim?
- É, eu gosto de homem, e aí?
- Homem? Mas com tudo? Você diz homem mesmo?
- É... homem... com “tudo”, o que mais poderia ser?
- E como a gente vai explicar isso para as crianças?
- Isso eu não sei. As crianças são problema seu.
- Mas meu bem, se você quer começar a agir como uma mulher, é melhor começar cuidando das crianças.
- Juraci, eu já falei que não quero ser uma mulher, eu simplesmente sou um homem que gosta de outros homens.
- Mas quem gosta de homem não é mulher?
- Ô Juraci, nem vem com essa sua psicologia infantil para cima de mim!
- Não é psicologia infantil querido, ou melhor, querida. É que já que agora nós dois estamos competindo no mesmo mercado, achei que seria natural se também dividíssemos as obrigações.
- Competir o mercado? Ficou louca? E desde quedo eu quero competir alguma coisa com você? E pode tirando esse seu cavalinho da chuva porque o que os homens procuram em mim, você não tem, meu bem!
- Ah... agora eu sou meu bem, né? Bom chuchuzinho, fique sabendo que só porque de uma hora para a outra o senhor vai subir nas tamancas e começar a rebolar, eu vou deixar barato. Pode já se preparando para me pagar pensão completa e a escola das crianças até o Juninho completar 25 anos.
- Mas que conversinha ultrapassada essa, heim? Logo você que na faculdade lutava pelos direitos dos homossexuais se achando toda liberal...
- Isso foi bem antes de eu saber que ia me casar com um.
- É, mas bem que você se lambuzou toda com esse corpinho aqui todos esses anos.
- Ai Geraldo, não seja grosseiro...
- Vai, diz pro papai, quem é o seu touro?
- Ai, Geraldão...
- Vai, diz que eu não te deixo louquinha...
- Geraldo, olha as crianças?!!!
- Vem cá, vem! Diz que você gosta!
- Mas aqui e agora, Geraldo?
- Vem logo, minha potranca!
- Geraaaaldo...
- Hum...
- Aí não!

Paçoca – uma história de chá, provavelmente de lírio

O que aconteceria se o mundo fosse feito de paçoca?

Para começar, passaríamos o dia inteiro ouvindo e fazendo piadinhas do tipo "vai farofa aí?" com a boca cheia de paçoca, cuspindo um pó escuro misturado com cuspe em todo mundo. Mas, pessoalmente, acho que o problema seria muito maior. Se você conseguisse dormir em uma cama de paçoca sem acordar enterrado, ou pior, se a sua casa de paçoca agüentasse todas as intempéries da natureza como ventos e chuvas torrenciais, você poderia acordar para mais um dia no mundo de paçoca.

Para viver em um mundo de paçoca, você deveria tomar alguns cuidados. Pensando que todos também seríamos feitos desse material sensível e farelento, a atenção em tudo na vida deveria ser redobrada. Você acorda e vai beijar sua mulher, marido, filhos, se colocar muita força no ato, pode desfigurar um deles, se der um beijo molhado, pior ainda. Aí seu cachorro pula em cima de você e te desmonta. E as maravilhas do mundo moderno então? Diga adeus ao aspirador de pó, ventilador, nem pensar. E esqueça o secador de cabelos. A escova e a chapinha estão com os dias contados.

Seria impossível sair na rua em dia de chuva, ou com ventos de verão. Entrar no mar, na piscina, tomar um banho quente ou gelado, ir à sauna. Nem exercícios poderíamos fazer. O que aconteceria se suássemos? Seria o fim.

Carros conversíveis, absolutamente inviáveis, abraços apertados, também. Não poderíamos beber água, muito menos cerveja, nem sorvete, nem nada que possuísse mais umidade que farinha, farofa ou tapioca.

A única vida possível seria no meio do deserto, contanto que os ventos cessassem.

E depois de tudo isso, se você sobrevivesse e estivesse comodamente ajeitado na sua cadeira de praia de paçoca, mas sem o mar, no meio do deserto, mas sem os ventos, tomando sol, mas sem transpirar, olhando seus filhos correrem, mas sem cair, e esperando a hora certa de tomar um refresco bem sequinho de farofa, apareceria um daqueles pés enormes por cima de você e ploft. Um esmagão acabaria com tudo.

Filosofia de banheiro – uma história de chá preto, aquele que sempre sonhou em ser café

Hoje de manhã, estava tomando banho e tive o primeiro momento de epifania do dia. Porque você sabe que o banheiro é um lugar onde as melhores idéias sempre chegam à nossa mente, talvez porque a gente nunca tenha onde anotá-las, seja sentado no trono, ou com a mão cheia de sabão embaixo do chuveiro...

De qualquer forma, estava lá eu, tomando banho, quando me ocorreu que, essa nossa corrida desesperada por um parceiro, logo logo não vai ser mais tão desesperada assim. Veja só, por mais que essas teorias fatalistas queiram nos colocar para baixo, dizendo que depois dos 30 todos estão casados, viúvos ou solteiros demais para quererem um relacionamento sério, uma coisa é certa, os nossos hormônios e o nosso relógio biológico podem, nesse exato momento (20 e poucos ou tantos anos), estar gritando desesperadamente por reprodução e mandando a gente transar a torto e a direito, mas daqui há 5 anos, 10 no máximo, essa taxa de hormônios vai diminuir brutalmente, nosso desejo vai diminuir, nossa vontade e necessidade de acasalar vai diminuir e então, virá apenas a paz, uma plenitude espiritual, um bem estar com você mesmo e, é claro, a menopausa (para as mulheres e impotência para os homens).

Porque falando aqui do lado instintivo, as mulheres podiam procriar até os 30 anos no máximo e, depois disso, morriam, porque a expectativa de vida era bem menor. Hoje, a expectativa de vida é mais alta, entretanto, são poucas as mulheres que conseguem ter filhos aos 40, porque a taxa de hormônios e etc é menor e deveria se manter assim. Não sei porque essa mulherada fica tentando alterar o curso da humanidade, injetando hormônios e fazendo fertilização artificial. O certo é que, depois dos 30, a taxa de hormônios baixa e a cruzada pelo homem/mulher ideal cessa e poderemos, enfim, ser solteironas/ões mais bem resolvidos.

É comum ver homens e mulheres solteiros, ou viúvos, ou divorciados depois dos 40 ou 50 que realmente dizem não sentir falta de sexo ou parceiro ou essas coisas. E porquê? Porque simplesmente os hormônios deles e o relógio biológico pararam de gritar por coisas que são “superficiais” e então a razão, com toda a sua sobriedade, pôde obter o controle da situação, trazendo, finalmente, alegria plena e enfim, o sentimento de se estar completo, sozinho com você mesmo.

No fim, são esses malditos hormônios que nos mandam sair por aí na balada olhando para todo e qualquer espécime do sexo oposto imaginando se ele/ela será "um bom pai/mãe para nossos filhos", querendo dizer, “será que ele/ela vai me fuder bem e me fazer sentir querida/o para suprir toda essa necessidade que eu sinto dentro de mim???”

Em resumo, instinto e hormônios. É só saber como usá-los para o lado bom da força. Para nos divertir, aproveitar e ser feliz. Sem se preocupar com o que será do futuro, ou se teremos marido/mulher e, mais imediatamente, se ele/ela vai ligar no dia seguinte...

quarta-feira, julho 26, 2006

Comentário de quando eu era Barista em Londres – uma história curta e ácida de café

Me senti mais realizada profissionalmente quando passei um ano e meio vendendo café, do que nos quatro anos trabalhando em agência de publicidade. Pelo menos eu fazia exatamente o que o cliente queria, quase nunca refazia o trabalho, entregava sempre no prazo e todos eles ficavam satisfeitos! E o melhor, ganhava mais por semana limpando mesa e fazendo capuccino do que quebrando a cabeça para saber que tipo de peito de peru a dona de casa da classe C gostaria de comprar.

Como está a vida no Brasil, para uma amiga em Barcelona – uma história curta de café

Por aqui as coisas ainda estão do jeito que você deixou. O PCC continua assustando as criancinhas, os pais de família e os engravatados. As noites continuam frias, a poluição continua atingindo níveis altíssimos, os taxistas continuam mal educados e as velhinhas continuam sem atravessar a rua. Como você pôde perceber, nada mudou.